segunda-feira, 14 de março de 2022

BONS LEITORES

No capítulo 3 de Dom Casmurro, o narrador conta a denúncia. É um capítulo curto, como grande parte dos capítulos da obra.

Mas... Denúncia de quê mesmo?

Capítulo 3 de Dom Casmurro

A denúncia

Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da Rua de Matacavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei eu de trocar as datas à minha vida só para agradar as pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.

- D. Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.

- Que dificuldade?

- Uma grande dificuldade.

Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes,  de concentração, , veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.

- A gente do Pádua?

- Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.

- Não acho. Metido nos cantos?

É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira, que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a alma cândida...

Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunc vi nada que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze a semana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta coisa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer?...? Mano Cosme, você que acha?

Tio Cosme respondeu com um "Ora" que, traduzido em vulgar, queria dizer: "São imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?"

- Sim, creio que o senhor está enganado.

- Pode ser, minha senhora. Oxalá tinham razão; mas creia que não falei senão dpois de muito examinar...

- Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de met^-lo  no seminário quanto antes.

Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o o império...

- Governou com a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos.

- Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.

- Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?

- Sei que você fez promessa... mas, uma promessa assim... não sei...Creio que bem pensado... Você que acha, prima Justina?

- Eu?

- Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é que sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta! Pois é coisa de lágrimas?

Minha mãe assou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não pude ouvir as palavras que Tio Cosme estrou a dizer. Prima Justina exortava: "Prima Glória! Prima Glória!" José Dias desculpava-se: "Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo..."


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